Franci Durán: Antídotos contra o esquecimento

 


por Raffaella Rosset 

O trabalho da artista chilena-canadense Franci Durán foi o centro do último programa da (S8) Mostra de Cinema Periférico, curado por Elena Duque. 

No mesmo dia de sua sessão, Franci ministrou com Robin Riad e Rhayne Vermette uma oficina de fitogramas e animação para alunos de graduação em artes visuais de A Coruña. A técnica de fitogramas vêm sendo trabalhada pela artista desde que a conheceu através das oficinas de Phil Hoffman, e durante a oficina contou aos alunos que o interesse por ela vinha atrelado ao desejo de documentar plantas ‘não convidadas’ que cresciam em seu bairro, Kensington Market, um ambiente que vinha se gentrificando mas onde algumas plantas persistem em florescer através das construções. 

Durante a oficina um filme coletivo foi feito com a impressão de flores e folhas coletadas em A Coruña sobre película 35mm. Franci compartilhou uma receita de revelador suave feito com a infusão das próprias plantas, que foram molhadas na mistura, colocadas sobre o filme que recebia luz e que posteriormente foi submergido em água e fixador. Assim surgiu o primeiro filme projetado na sessão dedicada a Franci, Antídotos contra el olvido (Antídotos contra o esquecimento), exibido junto às outras peças produzidas na oficina, e seguidos pelos filmes da artista. 

O fato de a sessão de Franci começar com um filme produzido em uma experiência de educação e compartilhamento de técnicas de produção de imagem é uma grande chave para a aproximação ao seu trabalho, que está frequentemente abrindo perguntas e conversas acerca da produção de imagens e das experiências compartilhadas. 

A sessão registra diversas maneiras usadas por Franci para criar imagens; há filmes com filmagens em câmera, impressora ótica, imagens feitas por contato com os objetos, revelados convencionais, revelados com plantas. O caminho proposto na sessão pela programadora ressalta dois momentos na obra de Franci; o de criar imagens que não existem, até passar a derreter imagens que existem. 

Cuentos de mi niñez (1991, 16mm, 9’) e BOY (1999-2005, 16mm, 6’) foram os primeiros filmes projetados depois dos filmes da oficina. Ambos são feitos com filmagens realizadas pela artista e que focam em momentos da infância. O primeiro é autobiográfico, e o segundo da infância de seu filho, mas também pensando sobre a própria; diz que ‘ele, assim como eu, não se lembrará da cidade onde nasceu’. 



Franci deixou o Chile exilada com parte de sua família depois do golpe de estado em 1973. Em Cuentos de mi niñez recorda alguns episódios desse momento, em especial relativos ao fim da vida de alguns amigos de seus pais, um mundo de adultos sob risco de assassinato e suicídio. A voz no filme aparece em off depois do som de uma caixinha de música como se fosse uma contação de histórias. E é, mas a medida que o filme avança o ritmo da voz vai ficando carregado da angustia de passar rápido para a próxima palavra; enunciar ao limite da possibilidade. 

Nos dois filmes há sobreposições de vozes em off em castelhano e inglês que falam às vezes simultaneamente, como em tentativas de praticar o movimento de recordar as correspondências entre as duas línguas, e também de lembrar-se de onde se veio a cada palavra enunciada. Assim como em Cuentos, em BOY a origem das imagens filmadas é misteriosa. Por vezes parece que são imagens-diário, e por outras que são encenações que evidenciam a falta de outra imagem que não se sabe onde está. 

As imagens presentificam o relato oral e a memória em situações do cotidiano. A vista por dentro de um carro em movimento, a mirada a imagens da televisão, a sala de casa; tudo isso enquanto se narra, se vive, na palavra, outra coisa ao mesmo tempo. O tio sob ameaça de fuzilamento. Nascimento de uma criança. Cor favorita. Lugares favoritos. A ida à embaixada com os pais. O medo de andar na rua. Mamá. Papá. Abuela. 

A flutuação pelas imagens através da palavra também aparece em It Matters What (2019, 16mm a HD, 9’). Uma mulher abre as asas de uma coruja em imagens de 16mm encontradas em uma loja de segunda mão e posteriormente alteradas por Franci. O texto em tela feito com Letraset e a voz se perguntam sobre a recusa de cultivar a capacidade de responder e ser responsável (“response-ability”) dos humanos com outras espécies, enquanto que todas, incluindo a humana, sofrem de ameaças de grandes mortes e extinção. O texto é de Donna Haraway. Depois da passagem que menciona essa “época de negarse a mirar sin precedentes”, o filme se converte em apenas imagens feitas com fitogramas – a técnica ensinada por Franci na oficina – que dão a ver ora abstratamente ora muito minuciosamente os veios das plantas que estiveram sobre o filme em algum momento. 



O toque a essas espécies não humanas é aqui bastante diferente do que vemos na imagem da mulher com a coruja no início do filme. Nesta última, o toque – a retenção do animal – é usado em função da criação de uma imagem fotogênica. No fitograma o toque é a imagem ela mesma. Foram usadas dezenas de espécies de plantas para essa parte do filme como Framboesa, Equisetum sylvaticum, Cornus canadensis e Iris. Importa e é recorrente no trabalho de Franci a menção a estas espécies envolvidas nas imagens e no processo de revelação. 



Chegando a metade do programa é exibido Traje de Luces (2018, 16mm a HD, 18’), filme onde Franci faz a reflexão mais discursiva acerca do que é e do que pode a imagem, contemplando aspectos da fotografia que aparecem seu próprio trabalho – retratos, imagens de violência, memória, textura – através de colagem de textos de autores como Susan Sontag, Claudio Durán, Jo Labanyi e Alice Miller. O filme é feito com imagens de touradas filmadas na Espanha por Jacques Madvo entre 1976 e 1978, durante a transição para a democracia depois da ditadura de Franco. 

Nesse momento da sessão se cria um vínculo entre a violência vivida no Chile e a observada na Espanha, de maneira que não se pode deixar de pensar no vínculo colonial entre estes territórios. Dirigir-se à Espanha para pensar no que significa a existência de imagens de violência ressalta justamente esse componente da experiência vivida no Chile retratada em seus filmes, uma violência importada, imposta por grupos políticos que se erguem do que segue da maneira de dominação colonial. 

Franci segue neste filme com intervenções diretas no material de arquivo como no filme anterior. Conta com a ação de espécies de micróbios, a quem agradece nos créditos, sobre o material 16mm que foi enterrado no solo, reimpressão das imagens e cópias por contato. Em um momento do texto que aparece sobre a imagem se lê que a fotografia agrega ao que retrata um aspecto de ‘espetáculo’. Que é um dos componentes da própria tourada; a Plaza de toros, as muitas pessoas olhando para um mesmo centro onde acontece algo. Como na imagem da mulher com a coruja em It Matters What, que é feita para atender, em grande parte, ao olhar. 


Se a maneira com que Franci realiza sua resposta ("response-ability") e interação com outras espécies em seu trabalho é também vinculada ao olhar – os micróbios agem em suas imagens, imprime rastros de plantas sobre película, faz reveladores com plantas – a expectativa e resultado de suas imagens é bastante distinta das imagens de dominação interespecífica que se vê nas imagens de arquivo que ela expõe. As imagens que a artista cria são nascidas a partir da ação direta desses seres nas imagens, de sua manifestação na matéria mesma delas. Gesto bastante distinto da dominação sobre animais não humanos. 

No debate posterior a sessão, Franci comentou outros aspectos da complexidade dessa relação interespecífica quando se trabalha com material fotossensível. Citou por exemplo a origem animal da gelatina da película e o dano causado pelos químicos de fotografia como problemáticas as quais sempre vê presentes no trabalho cinematográfico, e que a busca por respostas a elas é algo a se propor entre todas. 
 
Em Traje de Luces, Franci usa em diversos momentos um som em loop que manifesta uma certa expansão e detenção do tempo, conceitos que aparecem nos textos que ela cita sobre fotografia. Essa ideia também está presente no seguinte filme da sessão, In the Kingdom of Shadows (2006, 35 a HD, 6’), onde um mesmo plano em preto e branco dura quase todo o filme; está ali uma placa com tipos móveis de letras (Typeset) onde se lê o texto de Maxim Gorky sobre A Chegada de um Trem na Estação (1895) dos Lumière, a primeira crítica de cinema como o define Franci. A placa está sobre um recipiente com chumbo em alta temperatura e o texto vai derretendo durante a duração do filme, numa disposição de movimentos que dialoga com (nostalgia) de Hollis Frampton (1971), onde uma voz em off descreve a imagem de uma fotografia que acabou de ver-se queimando sobre o fogo. E depois a imagem da próxima fotografia, e da próxima, e da próxima. No filme de Franci, uma vez que o texto está quase todo derretido, as frases feitas linhas de metal, se corta para a imagem dos Lumière. “Tudo some e um trem aparece (...) transformando-te em um saco rasgado cheio de carne dilacerada e ossos estilhaçados”. 


Research Garden: A Compendium of Lost Moments (2023, 16mm, 7’) encerra a sessão com a experiência mais densa de investigação cromática. O filme é feito com fitogramas com plantas que vivem ao lado de Franci em sua casa, e com o uso de uma impressora ótica. É o único da sessão que não conta com a presença da palavra. Primeiro presente em seus filmes nas histórias, nas perguntas, nos relatos e nas línguas, e depois nas indagações acerca da fotografia, sua ausência neste último filme se sente como uma proposta para a relação direta com o toque remanescente na imagem, que parece ser o que orienta o desejo desses filmes, uma vontade da imagem como proximidade e a posta em questão da imagem como intermédio e veículo de subordinação.


(todas as imagens de Franci Durán)


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