Filmes de Narcisa Hirsch no Cineclube Florida e no Bellas Artes
Por Enrico Alchimim
No dia 12 de julho de 2024, um caminhante desavisado que passasse pela rua Florida poderia suspeitar de tudo que acontece dentro daquelas muitas galerias, poderia suspeitar inclusive, já que em Buenos Aires tudo é possível, que ali à altura 556, atravessando uma grade de ferro semi-fechada, tomando o elevador até o segundo andar e percorrendo um corredor mal iluminado, há um cineclube em operação, o Cineclub Florida — lugar ideal para os cineclubes, plantado no coração da cidade e escondido dos olhares desinteressados. A sessão da noite era dedicada à Narcisa Hirsch, cineasta sempre jovem.
Foram exibidos cinco de seus filmes, todos em formato digital, fornecidos por seu neto às três garotas que organizaram a sessão. Durante a projeção era permitido fumar e beber, e a pequena sala logo estava lotada de gente, cinzeiros e taças de vinho, o que me pareceu muito adequado para comemorar a obra de uma realizadora tão livre como Narcisa. Pablo Gamba, que também acompanhava a sessão, sussurrou a mim: “acho que Narcisa nunca teve tantos fãs”. De fato, imagino que poucas vezes Narcisa pôde lotar salas assim, especialmente com tantos jovens.
Come Out (1974) abriu a sessão. Talvez seu exercício formal mais rigoroso, justamente por se tratar de dois procedimentos mecânicos que necessitam de calibragem exata para produzir o efeito do filme. Uma passagem — dialética, se quisermos — que opera tanto imagem quanto som — a música de Steve Reich que dá nome ao filme. Do desfoco ao foco, da miopia à visão plena, da palavra ao ruído, da confusão ao entendimento.
Retrato de Marta Minujín
Seguimos com Pink Freud (1973) e Retrato de Marta Minujín (1974): o primeiro, uma tentativa frustrada de ficção e alegoria; o segundo, um exercício quase documental muito bem sucedido sobre a artista argentina. Embora sejam filmes de vontades muito distintas, ambos têm o corpo como seu objeto central, aquilo que reveste e toca a pele, o que mancha e o que esconde. O corpo drogado, desejado, o de carne e o de plástico, as máscaras e os olhos aparecem como motivos recorrentes dos dois filmes que, não à toa, estão separados por apenas dois anos.
Em Seguro que Bach cerraba su puerta cuando quería trabajar (1979), o próximo filme, Narcisa convida suas amigas e as filma em Super-8, em primeiro plano, sem som. Escutamos apenas a reação e os pensamentos dessas mulheres ao verem seus rostos em fílmico, tempos depois da rodagem. O filme foi realizado três vezes, 1974, 1979 e 2005. Em cada uma das vezes, Narcisa projetou as imagens e gravou o que suas amigas tinham a dizer.
Se hoje esse efeito já não é alcançável, isto é, emocionar-se, espantar-se com a própria presença filmada, é porque o ato de ver-se a si mesmo já não é o mesmo. Tornou-se muito mais cotidiano produzirmos nossos retratos, mas Narcisa convida suas amigas a um encontro secreto, um encontro que mesmo então já pretendia fugir da banalidade de um retrato. Fazemos parte desse encontro como se olhássemos pelo buraco de uma fechadura, a fechadura do quarto onde Bach e Narcisa trabalham às escuras. Ali escutamos as confissões das mulheres com quem dividia as emoções da vida, inclusive as da própria cineasta, que também filma a si mesma.
Rafael, agosto 1984 (1984) foi responsável por fechar a sessão. Outro filme de amizade e, por isso, outro filme de uma intimidade contraditória que deseja sempre se anunciar, escandalizar o que sempre quis esconder. Aqui, Narcisa dedica uma carta a seu amigo Rafael Maino. São imagens que filmaram juntos em viagens pela Patagônia, pelo Chile e pelo Brasil — também dedica ao amigo imagens de corpos masculinos que ela acredita que “podem lhe atrair”. Os sete anos de amizade se manifestam ali nas sombras desses corpos, do cavalo solitário que não enxerga o próprio reflexo, das evocações quase religiosas da voz de Narcisa, desse paraíso do qual ambos foram arrancados, mas do qual nenhuma nostalgia sobrevive.
Narcisa no museu
A obra de Narcisa Hirsch também encontrou espaço para existir em um grande espaço institucional das artes de Buenos Aires — que bom. Pouco menos de uma semana depois da sessão da rua Florida, o segundo andar do Museo de Bellas Artes foi ocupado para temporariamente exibir alguns de seus trabalhos como artista plástica, seus desenhos, suas anotações para a rodagem dos filmes, pôsteres e fotografias, enfim, um pequeno apanhado de recordações materiais da vida artística de Narcisa.
Seus filmes também estão lá, claro. Aqui, a experiência de fruição se adequa à de um museu: uma sala escura por onde se pode transitar, sair, entrar, sentar no chão ou permanecer em pé enquanto cinco de seus filmes são projetados em loop: Marabunta (1967), Come Out (1974), Patagonia (1972), Pink Freud (1973), Aleph (2005).
Experiência quase oposta ao do cineclube — não se pode fumar! — , a exposição do Bellas Artes dá conta de mostrar Narcisa Hirsch como artista multidisciplinar, escritora, poeta, cineasta. Muito de seu trabalho parece caminhar a esse ponto crucial da intimidade com quem é retratado. Quase sempre filmou/fotografou/desenhou/escutou gente muito próxima, sobretudo amigos e a si mesma. Expôs em imagem e som as angústias e os desejos, a pulsão de vida de todos esses encontros. Viva Narcisa, cineasta sempre jovem.
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