No se ve desde acá

 

Por Valentina Rosset 

No se ve desde acá (2024), do colombiano Enrique Pedráza-Botero, participou da recente 31ª edição do Festival de Cinema Chicago Underground. Produzido durante seu mestrado em documentário pela Universidade de Stanford, o filme trata da questão migratória latino-americana aos Estados Unidos, explorando Miami como objeto de estudo presente, e imagens e sons de arquivo como objetos de exploração e construção histórica. 

Com enfoque na Colômbia, o cineasta utiliza falas do atual presidente Gustavo Petro, o primeiro de esquerda eleito no país, não só como contexto, mas como confronto ao que vemos ao longo do filme. A montagem com materiais de arquivo segue essa mesma estrutura: imagens interrompidas por flashs na tela, horas propositalmente distorcidas ou apresentadas em recortes que enfatizam sua textura, a boca ou os olhos de alguém. Assim, as cenas gravadas no presente em Miami adquirem uma tensão para além de uma estética de documentário tradicional e observacional. O ritmo do filme é transiente, um pouco como o estado de migrar de um país para o outro. 

Logo de início, uma corretora de imóveis apresenta, em espanhol, a maquete de um novo edifício “exclusivo” em todo o país, que possui até spa para cachorros. Afirma que grande parte dos compradores destes apartamentos são de diversos países da América Latina. Contrapondo as imagens, ouvimos um uma fala de Petro: “este é o problema, se deixamos de ser pobres para viver como vivem em Miami, então a humanidade se acaba. (...) Que não se amarre a classe média exclusivamente ao ter, mas que se dê uma dimensão mais intensa de sua vida do que ir ao shopping, que é: a existência.” 

Do porto marítimo com milhares de containers, à especulação imobiliária com edifícios de luxo monumentais, Miami é a caricatura da obsessão pelo individualismo e materialismo americanos. Também, ao intercalar entre as estruturas luxuosas, e imagens de pessoas nas filas de controle imigração e cidadania, o cineasta estabelece o claro conflito de classes entre os latinos que migram para os Estados Unidos. Por um lado, estão aqueles que são os compradores destes apartamentos e logo reprodutores da mesma lógica de fronteiras privadas; por outro, estão os milhares de imigrantes sem poder aquisitivo, que sofrem com o controle e burocracia das fronteiras geográficas nas mãos do domínio americano. 


Os materiais de arquivo surgem como rupturas às imagens documentais, traçando historicamente a ideologia que sustenta essa relação de poder entre EUA e América Latina. Vemos a euforia na recepção de John Kennedy na Colômbia em 1961 na Aliança para o Progresso, enquanto ouvimos um solo de guitarra numa progressão de notas que não chega em lugar nenhum. Há também uma cena de Plan 9 From Outer Space (1959), onde o cineasta equipara dois soldados americanos discutindo sobre proteger o país de invasões alienígenas aos discursos anti-imigração que surgem em seguida no filme. 

Na segunda metade de No se ve desde acá, o filme se aproxima da organização interna e rede de apoio entre imigrantes latinos com distribuição de alimentos, roupas e brinquedos. Aqui vemos que, mais do que a identidade cultural, é a condição migratória que une. Como numa interferência de sinal, a imagem de uma câmera de segurança rompe o que víamos: a testemunha do incêndio no abrigo de migração na cidade de Juarez, que faz fronteira com o Texas, em 2023. 39 imigrantes morreram queimados. 

Aqui, a sátira fica muda, não há espaço para nada. É o único momento do filme em que uma imagem de arquivo ocupa a tela inteira. Ouvimos a fala do presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador culpando os migrantes pela tragédia. Mas a imagem revela que é fruto do sadismo e violência: há guardas que circulam no local. Não fazem nada, apenas somem, e nos segundos seguintes perdemos a visibilidade com a fumaça que sobe ao espalhar do fogo. Me parece aqui a denúncia mais importante do filme, onde o descaso com a imigração é externo e interno. A escala de sua violência fica clara. 

Ao final, o filme nos coloca no colo do absurdo. Uma fábrica de produção em massa de bandeiras americanas, onde a maioria de seus trabalhadores parece ser imigrante. Essa imagem nem é mais simbólica, é direta: um microcosmo de como os Estados Unidos operam. Em planos de maior duração, mulheres olham para a câmera enquanto trabalham nas bandeiras. Ecoa-se o incêndio, ecoa-se o passado, o presente, e os perigos da eleição norte-americana que está por vir. No entanto, também persiste a voz do último relato: “Para uns, somos maus, para outros, não existimos. Mas para uma imensa minoria, estamos aqui.

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