Amizade


Por Enrico Alchimim 

Uma odisséia vomitada. É o que diz um dos amigos de Cao Guimarães em uma das muitas conversas que o diretor gravou ao longo de sua carreira. Aqui, em Amizade, são as muitas amizades, e há de perdoar-me a repetição, de Cao Guimarães que servem de combustível para suas reflexões. Esta odisséia vomitada da qual fala o amigo não diz respeito ao filme que assistimos, mas serve muito convenientemente como ponto de inflexão do discurso de Guimarães para resumir o próprio filme, suas imagens e sons. 

Em primeiro lugar, é impressionante a vastidão do acervo pessoal de Cao Guimarães, que registrou momentos íntimos em super 8, betacam, VHS, celular e outros formatos. Apesar de vermos tais imagens percorrerem o filme todo, Guimarães não as articula através de um formato específico, na verdade, o diretor mal as comenta. Passamos por elas como as paisagens passam rapidamente pela janela de um carro. Se há uma frustração que surge disso, é preciso abandoná-la logo de cara. A articulação é, de fato, de algo vomitado: o indigesto que volta das entranhas do tempo para uma nova vida deformada, incompleta, fermentada. 

Por que o cineasta olha para as imagens do passado? Por que decide revisitar sua vida íntima de 20, 30 anos atrás? Dar uma nova existência a essas imagens, recuperá-las do vazio das prateleiras e arquivos digitais não exige um motivo além do capricho do próprio cineasta em querer compartilhá-las. O arquivo de Amizade nos propõe, à primeira vista, o olhar curioso para vida alheia. Num segundo momento, a beleza dos materiais, especialmente os super 8, promete dar conta de acompanhar os aforismos e reflexões de Cao Guimarães sobre a amizade. 

As imagens se tornam quase ilustrações, panos de fundo para a voz solene do diretor e de seus amigos, que conversam com o momento presente. O mecanismo ‒ ou dispositivo, termo ao qual Cao Guimarães foi insistentemente ligado desde o início de sua carreira ‒ dá conta de acompanhar a trivialidade dos pensamentos dessa voz em off. Mas ainda há de surgir algum trabalho de fôlego sobre o que foi a existência humana na pandemia, e dificilmente virá das mãos de um cineasta já veterano, criado e educado com outras formas de produzir imagens ‒ e é preciso falar em educação quando falamos de cinema e pandemia. 




Pelos últimos momentos do filme, um vagalume semi-morto produzindo suas últimas fagulhas de bioluminescência é filmado em plano fechado. Poderíamos tomá-lo como muitas metáforas, mas recuso a tentativa de mais uma. Em seguida ao plano do inseto, uma câmera na mão revela muitos outros vagalumes cintilando pela escuridão, ao que escutamos as vozes embriagadas dizerem que aquilo é impossível, que o bicho é na verdade uma máquina movida a pilhas e que a cortina do show finalmente se levantará e revelará a farsa. 

Seriam também farsas, fraudes, simulacros grosseiros, as imagens que filmamos durante a pandemia? Que imagens são essas que filmamos do jeito que pudemos e não do jeito que queríamos? As telas de reuniões online, zoom meetings, chamadas por vídeo do whatsapp têm o mesmo valor de arquivo que as imagens produzidas por outras máquinas? São perguntas cujas respostas não aparecem de imediato, que imagino que Cao Guimarães tenha passado por elas em algum momento durante a montagem do filme. 

Embora as respostas não sejam óbvias, tais perguntas contaminam a segunda metade do filme, intitulada de Os Chips (em contraponto à primeira Das Válvulas). Pois filmar uma tela de computador é uma nova maneira de manter nossos amigos por perto, inaugurada, ou pelo menos legitimada durante a pandemia de covid-19. No fim das contas é isso que o filme nos dá, novas maneiras de filmar nossos amigos, novas maneiras de criar um arquivo pessoal, de criar memória. E embora já beire a saturação caricata, o tema da memória é levantado a cada instante de Amizade. A enunciação da própria palavra vacila entre o cafona e o eloquente, parece mesmo não haver meio termo. 

Why don’t you close your eyes and reinvent me?” Pedaço da letra de uma canção do Massive Attack, citada mais de uma vez no filme, aparece como uma guia acidental para essa querela da memória. É a grande descoberta da fantasia do outro, da imagem que ocupamos no inconsciente alheio e da fixação de um corpo nos sais de prata de um filme caseiro. É preciso fechar os olhos e aprender a ver novamente: a amizade, a verdadeira amizade, é o longo caminho de aprender a ver o outro, de cultivar a memória e recusar a nostalgia.

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