Gênesis+ e Iluminuras Noturnas

 

Por Enrico Alchimim 

O espectador do Festival Ecrã não é somente o espectador da sala de cinema. Ao caminhar pelos corredores da Cinemateca do MAM, era sempre recebido por vídeo-instalações em loop que antecediam minha chegada à sala. Interagir com tais obras significava ser contaminado de alguma inquietude, alguma semente de pensamento, antes de chegar à sessão do filme programado. O dia de encerramento do Festival produziu uma bela coincidência (ou intenção programada pelos curadores) entre dois trabalhos: Gênesis+ de Augusto Calçada, e Iluminuras Noturnas, de Cristiana Miranda. 

Gênesis+ é uma obra interativa posicionada na primeira dobra que se faz a caminho da sala de cinema. Está ali um aparato composto por um microscópio e duas telas, uma principal e outra secundária. A lente examinadora do microscópio lê a tela secundária, em que se vê apenas um círculo pelo qual passam imagens indecifráveis, fragmentárias e de cores muito fortes. Logo acima das lentes do aparelho, há a tela principal, que exibe imagens ‒ geradas por inteligência artificial ‒ de florestas tropicais, matas exuberantes, animais e pessoas indígenas, imagens deformadas pela IA. 

Quem passa por ali é imediatamente compelido a olhar pelo microscópio, uma curiosidade infantil por encontrar algo que só se revela diante de lentes mais poderosas que a objetiva do cinema. Dá-se ao do microscópio a função de projetor, um quase kinetoscópio de Edison pelo qual vemos desfilar as imagens que substituem a lâmina de matéria orgânica que geralmente se encontra ali. É possível dar zoom in e out e revelar a composição mínima do sensor da tela, encontrar a origem de uma imagem digital e ultrapassar o pixel. 

No texto que acompanha a obra, fala-se de um DNA primeiro, um material genético-cultural-social compartilhado pelos povos indígenas genéricos aos quais se refere e que nos foi deixado como legado (sic). Tão genéricas e insossas quanto à ideia de “harmonia com a natureza” que propõe Calçada, são as imagens geradas ‒ nunca criadas ‒ por IA: deformes, inexpressivas e cínicas. Genesis+ sofre de uma contradição formal e política grotesca. Por nos dar a oportunidade de olhar para o minúsculo e imaginar, então, outros horizontes possíveis para a imagem digital, me parece vazio de sentido que exista uma outra tela tradicional, comum, que não brinque com nossa cognição como faz a primeira e que, além de tudo, use de ferramentas e procedimentos que subjugam e despersonalizam aqueles que pretende retratar.


 Foto: JL Ribas

Cheguei à performance de Cristiana Miranda logo depois de me desfazer das lentes de aumento de Calçada. Iluminuras Noturnas age pelo sentido contrário: expandir, preencher. A performance era composta por um projetor principal de 16mm e outro, secundário, de 35mm. O último estava preparado na cabine de projeção da sala e projetava, em loop, uma fita cuja emulsão fora retirada e na qual a diretora pintou muitos círculos azuis que pulavam de um lado para o outro. O 16mm foi montado no centro da sala, em meio a todos os espectadores, e ali Cristiana conduzia a performance. 

Diretora e sua amiga/auxiliar, Helena Zimbrão, atravessavam pelo foco do projetor diversos objetos que deformavam, refratavam e expandiam a luz. Enquanto uma fita 16mm ‒ pintada e rabiscada ‒ era projetada, uma lente separava a imagem em três e a pulverizava por toda a sala de cinema. A intervenção direta no material fílmico permitiu que a luz projetada produzisse novas texturas ao entrar em contato com os diferentes materiais do ambiente: o veludo das cortinas, a madeira do palco e o tecido do teto. Enquanto Cristiana e Helena criavam muitas formas e silhuetas através da luz, Verónica Cerrota produzia o acompanhamento sonoro da performance. Em conversa depois da sessão, revelou que tentava apenas seguir o ritmo das imagens, mas me parece que sua composição musical foi essencial para o deslumbramento de qualquer um que esteve ali. 

Assim como a curiosidade infantil de olhar para o microscópio nos convida ao trabalho de Calçada, há no trabalho de Cristiana a perplexidade também infantil de ver luzes e cores invadindo todos os cantos de um ambiente, uma primeira visita ao planetário. O cinema experimental, em suas condições ideias de fruição, convoca espectadores também experimentais. Nenhum presente estava olhando para o mesmo ponto que outro, muitos inclusive olhavam para trás ‒ sentido proibido do cinema ‒ diretamente para as artistas expostas no meio da sala brincando com seus prismas, espelhos e sombras.

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