A Transformação de Canuto (2)

 

Por Martina Mattar 

Uma tela de cinema ondula com o vento, presa apenas pela borda superior. Uma rajada forte agiganta o movimento e a lona branca vai desaparecendo, revelando o que está por trás: o verde vívido de uma floresta densa. Essa imagem do trailer de A Transformação de Canuto me encantou e me motivou a assistir à sessão na 13a Mostra Ecofalante de Cinema, que ocorreu de 01 a 18 de agosto em São Paulo. Logo depois, o filme, que já havia sido condecorado na IDFA, ganhou quatro prêmios no Festival de Gramado. O reconhecimento triunfal do filme honra a sofisticação alcançada após mais de uma década de produção, em uma colaboração entre os diretores Ernesto de Carvalho, de Recife, e Ariel Kuaray, de uma aldeia indígena Mbyá-Guarani na fronteira entre o Brasil e a Argentina, onde o longa foi gravado. A proposta de Kuaray é resgatar um evento tabu ocorrido em sua aldeia na década de 70, quando um homem chamado Canuto perdeu o controle de suas emoções, se transformou em uma onça e, em seguida, foi abatido pela comunidade. 

Kuaray e Carvalho registram em vídeo todos os passos tomados nos dez anos de produção de A Transformação de Canuto. A partir dessas imagens, eles montam um filme que faz o termo “bastidores” perder sentido. O “trabalho em andamento” é o trabalho. Os meios são o fim. Esse período de uma década também registra o desenvolvimento dos diretores como cineastas e da comunidade como agentes do cinema. Por estar à frente das câmeras, Kuaray se torna uma referência para o público, assumindo o papel de diretor-personagem. O espectador o acompanha enquanto ele trabalha com Carvalho para desenvolver a história de Canuto, discute com amigos que aceitaram atuar no filme, faz propostas cinematográficas à comunidade, se irrita com a falta de paixão do ator principal e, finalmente, assume o papel do protagonista. 

Kuaray manifesta a figura do cineasta que persegue sua ideia até transformá-la em realidade. Seus métodos experimentais são como tentativas de invocação, com o intuito de conjurar a alma de Canuto para capturá-lo em imagens. A tensão entre os eventos do passado e sua representação no presente é reforçada pela intenção fervorosa do diretor em se aproximar o máximo possível da experiência de Canuto, de reencarná-lo na imagem e em si mesmo. Seu sentimento é tão intenso que a frustração surge em contrapeso, inevitável, emprestando ao filme uma sensação de incerteza que se intensifica com o caráter investigativo do processo. Kuaray é tão dedicado à tarefa em suas mãos que, às vezes, ela parece presa entre seus dedos. Na busca por um corpo selvagem, o filme testa diferentes conjurações, ativadas em cenas diversas, mas a mais potente de todas é a perda do controle. Diante disso, a narrativa não apenas antecipa o descontrole do protagonista, mas também o do próprio diretor. 


A figura da onça adiciona à sensação de que estamos lidando com uma busca perigosa e difícil. Quem viveu perto de florestas habitadas pelo animal sabe que a imagem do jaguaretê está sempre à espreita, na imaginação, no receio, em pegadas, em histórias de vizinhos. Do animal se ouve falar, mas ver efetivamente é uma experiência rara e carregada de sentimentos contraditórios. As cenas em A Transformação de Canuto espelham justamente essa relação das comunidades da mata com o animal símbolo da natureza brasileira. Diversas representações de seu corpo e espírito permeiam o filme: esculturas de madeira, desenhos de criança, gente em quatro patas, olhares penetrantes, socos enfurecidos, rugidos confundidos com trovões, etc. Vê-se de tudo, menos a coisa em si. 

As pegadas mais frescas ‒quando se sabe que o animal está próximo‒ são deixadas por Álvaro, escolha óbvia de um teste de elenco gravado com as crianças da comunidade. O menino sério e compenetrado, cujo olhar desperta conjecturas da existência da alma, estampa o pôster do longa. Ele é o ponto de partida para a reencenação da narrativa do homem transformado. Com um corte seco, sem um grito de “ação”, a vida pessoal do ator se mescla com a história do personagem, levantando a questão: “Quem está por trás de seu corpo, o filme ou a onça?”. A partir daí, não se sabe mais o que é Álvaro e o que é Canuto. 

Percorrendo com familiaridade caminhos dentro da mata fechada, mostrando possuir um conhecimento secreto da floresta, Álvaro deixa claro que passou muito tempo dentre aqueles troncos, folhas e espinhos, guiando o espectador como se apresentasse sua casa a visitas. Diante de uma relação tão íntima e dominante com a natureza torna-se instintivo para o espectador enxergar Canuto e o espírito da onça fundidos em seu corpo. Nesse espaço cinematográfico que desafia as fronteiras entre ficção e documentário, a sensação é de que as dimensões temporais se fundem no corpo de uma criança racionalmente alheia à complexidade da obra na qual participa, e que, justamente por isso, habita tranquilamente este terreno interdisciplinar e interdimensional. 

O perfil de caçador de Canuto é ilustrado em uma sequência onde Álvaro monitora as armadilhas que deixa pela floresta. Sua destreza em armar diversas engenhocas com galhos e outros materiais orgânicos é fascinante. O extenso tempo de tela dedicado a essa prática é apreciado pelo espectador tanto por sua sofisticação quanto por ilustrar a transmissão do conhecimento tradicional às novas gerações. Álvaro emprega uma metodologia ancestral consolidada ao longo de gerações em suas armadilhas, tão certeiras em seu movimento mortal quanto em sua própria existência. 


Em contraste com a técnica centenária exibida pelo ator mirim de Canuto, a prática audiovisual estabelecida em A Transformação de Canuto é fundamentalmente experimental, de pesquisa e desenvolvimento. Dentro do contexto do cinema indígena emergente, no processo de delinear-se e diferenciar-se do cinema hegêmonico, os diretores propõem diversos exercícios cinematográficos para se conectar com um passado ancestral, manifestado na figura de Canuto. Seja ao gravar a equipe e suas famílias assistindo aos diários de filmagem do dia, registrar amigos conversando casualmente sobre o filme à noite, embriagar um dos diretores enquanto o outro segura a câmera, mesclar a história pessoal dos atores com a dos personagens, filmar a execução de exercícios cênicos e corporais, ou aproveitar a disposição cotidiana dos membros da comunidade para compor o quadro e sobrepor uma encenação — cada sequência é como uma arapuca posicionada no mato, à espera de capturar significados profundos. Às vezes, esses mecanismos falham; outras vezes, funcionam tão bem quanto as armadilhas de Álvaro. 

Os numerosos experimentos precisaram ser organizados na estrutura linear de um longa-metragem, mas o desafio se transformou em uma oportunidade criativa para construir novas relações poéticas na sala de edição. Um destaque é a imagem descrita no começo desse texto, aquela que me motivou a assistir à sessão na Mostra Ecofalante. Ela conclui uma sequência dedicada ao falecimento do avô de Kuaray, que testemunhou a transformação de Canuto e era uma figura muito importante para a comunidade. Coincidentemente, ele falece durante a filmagem das cenas narrativas. Esse acontecimento interrompe a produção e obriga Kuaray, que até então estava imerso em uma fatalidade do passado, a enfrentar o luto no presente. Na montagem das cenas, a imagem da tela de cinema ao vento sucede a do enterro, enriquecendo o filme com uma força poética emocionante. A fluidez da lona branca no ar evoca a figura de um espírito voando para além do mundo material, aludindo a esse momento em que a narrativa dá lugar à realidade da vida e da morte. Por fim, sabe-se que nessa mesma tela cenas de A Transformação de Canuto foram apresentadas à comunidade, e a imagem do avô Mbyá-Guarani foi projetada sob aquele tecido. Logo, essa mistura de sopro etéreo com cinema, sucedendo o enterro, é como um gesto gentil dos diretores de desencarnar seu corpo do filme e alçá-lo ao céu. 

Aos habitantes da aldeia, os diretores têm um respeito delicado, que transparece na forma como os representam. Nota-se que a relação entre Kuaray e as pessoas que ele aponta a câmera vai muito além do momento da gravação. Esses vínculos, já enraizados, certamente se fortalecerão ainda mais após a experiência com o filme. Mentorados pela iniciativa pioneira Vídeo nas Aldeias, que desde 1987 “promove o encontro do índio com a sua imagem”¹, Kuaray e Carvalho, em A Transformação de Canuto, multiplicam arte, pesquisa e mobilização comunitária, evidenciando o potencial do cinema para transformar o futuro de uma comunidade.

1. Video nas Aldeias. Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCPO8MqU6CAliikE80j8RH-g. Acesso em: 30 ago. 2024.

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